Notícia
MMXX — Masterclass com Cristi Puiu
O realizador romeno Cristi Puiu marcou presença no 18º LEFFEST (2023), com uma masterclass dedicada ao trabalho que realizou com os actores para o seu novo filme, MMXX, e ao processo de criação e ensaio a que se dedica nas suas obras. Uma conversa inspiradora e que imediatamente cativou o público, e que pode descobrir aqui. MMXX estará nos cinemas a 27 de Maio de 2024.
Alguns excertos seleccionados:
Acredito que aprendemos coisas sobre representação quando estamos a representar. Quer dizer, podemos trocar muitas ideias sobre trabalho de actores e o que é ser actor, mas temos de saltar para a água – é como nadar, sabem, aprendemos a nadar ao saltar para dentro de água.
Concordámos sobre a forma como íamos fazer o workshop, seria pago — eles tiveram que pagar o workshop e decidimos pôr todo o dinheiro na produção do filme, não havia dinheiro suficiente e de qualquer forma tínhamos de procurar dinheiro noutros lugares, não para mim, para o filme. Eu disse-lhes, desde o início, que não queria receber nada, porque precisava de ser livre para levá-los até ao limite, e quando estamos a ser pagos por um actor é muito difícil lidar com tudo isso.
É assim que funciona: os ensaios com actores são uma longa série de “não”, “não é bom”, “não é suficiente”, “não está aí”, “isso não”, e não é fácil sair com tantos “NÃOs”. Mas o facto é que quando eu aceito uma proposta, quando digo que é boa, isso é levado a sério. (...) Eu percebo que esta minha atitude traz um certo tipo de sofrimento, mas é um sofrimento bom, porque vem da sua luta, da luta do actor com o ego dele, e o que poucos actores entendem é que o ego é o inimigo, e o narcisismo é o seu maior inimigo. (...) Esse tipo de narcisismo está a tomar todos os domínios artísticos, todos os artistas de qualquer tipo, esse é o inimigo que temos de combater durante o processo de estar diante da câmera: é sobre estar lá, algo que não acontece na vida quotidiana.
Pedi aos actores que viessem ao casting e lessem um texto, e eles não conseguiam ler as palavras, não conseguiam acompanhar a pontuação, não conseguiam acompanhar o sentido das frases, queriam colocar-se acima do texto, queriam ser criativos antes de entenderem do que se tratava — tinham medo do texto. Então disse-lhes para não representarem, e alguns perguntaram: “mas quer que eu seja como na vida real?”, e eu disse que não, porque na vida real estamos a mentir, estamos a enganar, e é isso que eu não quero ter, não quero que mintam, não quero que enganem. Isto é algo muito importante para pensarmos, porque é algo que abre portas.
Com esses actores que pagaram o workshop (alguns saíram e ficámos com 15 ou 14), começámos a trabalhar e a conversar sobre o que vivemos em 2020. Eu disse para mim mesmo, vou tentar fazer algum tipo de experiência: os actores estão a participar na escrita do texto, então, de alguma forma, o texto será deles, não meu. Não tive em consideração que na verdade as pessoas escondem a sua verdadeira face e de qualquer forma tendem a esconder sempre a sua verdadeira face, as suas verdadeiras histórias, e por isso não é uma tarefa fácil. Se formos um autor, então assumimos que o somos, colocamo-nos em perigo — temos de nos colocar em perigo, assumindo o facto de que quando estamos a falar sobre a forma como vemos o mundo, as nossas experiências, somos alguém que está a testemunhar, e isso não é uma coisa fácil de fazer, temos a tendência de nos proteger, de organizar tudo para sobreviver. O processo de testemunhar é a arte da criação, que não é apenas criação, é uma restauração: restauramos não um evento, mas a nossa perspectiva sobre um evento. (...) Temos de sofrer uma longa série de decepções, caso contrário estaremos apenas a alimentar todas as tendências autoritárias das pessoas com quem convivemos. Não podemos ficar com raiva da pessoa que está no poder se não mostrarmos a nossa oposição. Portanto, ser autor é colocar-se em perigo – porquê? Porque dizer a verdade é colocar-se em perigo. Isso não significa que o autor seja o depositário da verdade, mas é isso que temos de procurar, em vez de colocar o espectador em perigo, temos de nos colocar a nós próprios em perigo.
Neste momento, estou a rejeitar todos os filmes e livros que pertencem a autores que pregam e manipulam o público.
Então, com tudo isto em conta, começámos a trabalhar. Eu disse, ouçam, vamos fazer algo impossível: começámos a conversar e decidimos adaptar três diálogos de Platão, e adaptá-los aos episódios do nosso período de confinamento.
Eu disse a mim próprio, se eles estão aqui e se apostaram dinheiro neste filme, então tenho que encontrar a fórmula certa para que todos sintam como é ser actor realmente, não apenas para dizer três falas, mas eu tinha de imaginar uma situação em que cada actor tem um papel principal.
Não se trata de talento. Talento é desejar muito alguma coisa, e se realmente a desejarmos muito, então encontraremos o caminho para a conseguir. Não sei se o desejo para mim significa coragem, mas é realmente uma questão de coragem, principalmente no caso dos actores.
Conversámos sobre as nossas experiências durante a pandemia e depois tentámos imaginar os casais, porque é sempre sobre um casal, é sobre um e outro, sobre o confronto consigo mesmo.
Não se faz um filme, rouba-se um filme, roubamos da vida, da equipa, do produtor, de toda a gente, temos que roubá-lo, somos como um ladrão, temos que fazer isso para conseguir o nosso filme.
É preciso mobilizar os nossos exércitos para fazer um filme, porque numa equipa normalmente há apenas três pessoas, talvez, se tivermos sorte, que se importam com o filme. Temos sorte quando o produtor quer fazer o filme, mas quando somos nós e o produtor e alguém como o director de fotografia ou o actor principal, então estamos no paraíso. Todos os outros estarão lá por razões completamente diferentes, não pelo filme: o director de fotografia é pela imagem, o engenheiro de som é pelo som, os actores são por si próprios, todos estão a defender os seus navios. Quer dizer, talvez seja impossível fazer de outra forma, é uma utopia, ter uma situação onde todos os membros da equipa são solidários.
A certo ponto, até pedimos a um padre para vir, é verdade! Não porque houvesse demónios para espantar nesta casa, não sei se havia demónios ou não, mas havia uma energia muito muito má, eu sangrava do nariz todos os dias, havia uma frequência muito baixa, alguma coisa realmente pesada, e a certo ponto as coisas estavam mesmo a funcionar mal e tive que o chamar.
Eu disse-lhes, vamos estar juntos dois meses e vamos atravessar um inferno: eu quero fazer este texto, e quero começar a trabalhá-lo desde o primeiro momento, não sei quem vai ser quem, vamos ler o texto juntos e quero que me digam o que retiram dali e o que não compreendem. E então eles vieram, e começámos, e foi muito pesado desde o início porque é um texto que te puxa como actor, que te mergulha nas tuas memórias.
Costuma adaptar a forma como trabalha com os actores em cada filme, caso nunca tenham tido experiência como actores antes?
Eu tento adaptar a cada pessoa, mas é preciso algo a que chamo química, e se não há química é muito difícil. Existe também um mecanismo de sedução, ou seja, neste trabalho temos de os seduzir e deixar-nos ser seduzidos por eles, o que é uma coisa muito perigosa de se fazer no trabalho com actores. Digo-lhes sempre para evitarem dormir uns com os outros, porque é uma coisa muito perigosa, se deslizarem nessa direcção pode ser muito perigoso. Por isso a primeira coisa que lhes digo quando faço workshops, é para nem sequer pensarem nisso, porque vão sofrer muito e vai ser um inferno. Tentem apenas encontrar uma forma de se aproximarem da outra pessoa e esqueçam todos os detalhes de uma possível relação sexual, trata-se de amar o outro à nossa frente como amamos um irmão ou irmã, morreríamos por ele, é como um bebé, a nossa mãe, esqueçam a esfera sexual.
Eu acredito que o cinema americano trata-se de fazer a verdade com mentiras.
Para mim, existem três tipos de filmes: há os filmes de propaganda, há os filmes de autor, e há os filmes de Godard, que são de auto-propaganda.
Porque decidiu ser você próprio um actor neste filme?
Porque estou muito apaixonado por mim próprio. (...) Não, na verdade não estávamos a encontrar um homem com estas características, e depois de vários dias de casting, a Clara perguntou-me, porque não fazes tu? E eu achei que não conseguia porque ia estar ocupado a dar as falas, e porque sou tímido e não tenho coragem para estar em frente a uma câmera, e isso seria horrível para o filme, seria muito difícil, mas quando voltei para casa isto ficou na minha cabeça, e comecei a questionar-me sobre o que era este filme afinal. Este foi um período muito estranho na minha vida, de uma grande sensação de solidão. E esta sensação de solidão vem de um grande problema de comunicação. Agora já estou mais calmo, mas na altura sentia-me furioso porque tinha este problema de comunicação, e por isso queria fazer um filme sobre isso. Disse para mim próprio: o problema não somos nós, nunca saberemos o que vai na cabeça das pessoas, estamos dependentes de palavras, gestos, entoações, e na verdade a razão para não conseguirmos realmente conectar-nos com a pessoa à nossa frente é o facto de não conseguirmos escapar da nossa própria cabeça, estamos presos na nossa própria cabeça. E por isso eu faço de um homem que está preso na sua própria cabeça, e tive que, enquanto realizador, dividir-me entre dirigir os actores e ser eu próprio verdadeiro a mim mesmo — algo para o qual eu não estava preparado.
O filme para mim foi esta experiência, um filme é apenas o efeito secundário de uma experiência, é parte dos restos que sobram depois de acabar a experiência. A experiência de um filme pode ser também uma experiência de auto-descoberta, deve ser assim, não sabemos se nos vamos descobrir a nós próprios, mas é por isso que digo que o resultado não é tão importante como a experiência em si.
Eu adoro filmar, adoro este inferno — porque é um inferno, e eu tenho sempre imensos problemas que não consigo resolver. Mas sinto-me confortável, é esta a vida que eu quero.
Os actores vão odiar-me, mas eu continuo a dizer que o ego é o pior inimigo de um actor, e aquilo que pode ser o melhor amigo de um actor, o oposto do ego, é a humildade.
Há um monge romeno que passou 14 anos na prisão durante o regime comunista, e quando saiu disse: “Não temos o que temos, temos aquilo que damos, e não damos aquilo que temos, damos aquilo que somos.” A generosidade, o dar aquilo que somos, para mim é a definição de um actor. Não vejo a humildade como uma perda de dignidade, mas mais perto de uma ideia, de origem eslava, que é ter dentro de nós a sensação de medida de nós próprios, sabendo que a nossa medida é a humildade.
O autor é sempre aquele que ouve, não aquele que fala: falar é um efeito secundário da expressão da generosidade do autor.
Se fores realmente um artista, vais ser habitado por todo o universo, e não se pode colocar todo o universo num filme. Há nuances, condicionantes, todas as obras de arte são condicionadas pelos seus limites, por isso temos de fazer escolhas o tempo todo, e são escolhas que não são feitas com a cabeça, são feitas com o coração. Um realizador tem de confiar no seu coração.
Um actor está sempre a fazer tudo o que possa por forma a evitar um confronto consigo próprio. (...) Mas não há profissão neste mundo que nos possa proteger desse confronto. O inner-self do actor é protegido e mediado pela personagem que está a interpretar. Ser um actor é ser nós próprios pelas palavras de outra pessoa — esta é a definição perfeita.
Acredito que há realizadores que sabem realmente trabalhar com actores, que conseguem tirar o que querem dos actores, acredito, mas não tenho provas.
A experiência de vida mostra-nos que as coisas mais importantes não se conseguem pôr em palavras, e se tentamos pôr em palavras parecemos estúpidos: quando tentamos falar de amor ao nosso companheiro, quando tentamos pôr num poema tudo o que é importante para nós, é impossível. E por isso percebi que as coisas verdadeiramente importantes não se podem traduzir em linguagem corrente. Para nos conseguirmos verdadeiramente expressar temos que nos transformar em poetas, de alguma forma. Temos de ter a coragem de apostar na poesia. Eu venho de uma família proletária dos subúrbios de Bucareste, cresci muito pobre, e conheço o resultado de ganhar coragem para falar de poesia num bairro como este: “És uma miúda ou quê? Tens é de brincar com carros e ser duro e gostar de futebol”. Mas a coisa mais importante que aprendi é que se queremos passar uma mensagem, temos de acreditar na poesia.
Para mim, a razão para os actores estarem em palco não é o ego, é a possibilidade de existir em frente a outros, sendo eles próprios. Esta frase faz-me todo o sentido: ninguém consegue ultrapassar-nos neste desporto que é trair-nos a nós próprios.
É um trabalho incrivelmente difícil, mas quando conseguimos ser bem sucedidos, a glória é toda nossa, e não será uma glória qualquer, será uma sensação de alívio e de paz. E é difícil não estar a representar mas realmente amar os colegas, e acho que o truque para isto é imaginar que eles têm 3 ou 4 anos, porque é impossível não adorar uma criança de 3 ou 4 anos quando se fala com ela — se isso não acontecer, então deviam ir a um psiquiatra, porque é impossível.
