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Ricardo e a Pintura – Entrevista com o realizador Barbet Schroeder
O realizador Barbet Schroeder, em entrevista sobre RICARDO E A PINTURA, afirma que o seu novo filme navega pela história da arte, reconstituindo-a de forma original e viva, e leva-nos a descobrir a vida do pintor Ricardo Cavallo, um homem e um artista excepcional, com o qual mergulhamos na história da pintura e dos grandes artistas (da gruta de Chauvet à arte Grega ou aos Aztecas, a Tiepolo, Caravaggio e Velazquez, ao Cubismo, Braque e Picasso…).
Nos cinemas a partir de 9 de Maio.
O que o seduziu primeiro? Ricardo Cavallo ou a sua pintura?
Ambos, em simultâneo. E isso foi há mais de quarenta anos, graças a Karl Flinker, um grande amante de arte, livreiro e galerista, e também amigo íntimo da minha mãe. Desde que cheguei a Paris, com 11 anos, ele tornou-se um pouco o meu pai espiritual. Mantivemos sempre o contacto e, um dia, em 1982, ele disse-me que eu tinha mesmo de conhecer um dos seus novos pintores, que se tinha tornado seu amigo, e que era realmente fantástico. Foi assim que me vi a subir os sete andares de um prédio em Neuilly, até ao pequeno quarto de empregada que Ricardo Cavallo transformara no seu atelier. A sua pintura e a sua personalidade conquistaram-me desde o início. Soube imediatamente que, na vida, encontramos poucas pessoas como ele. O Ricardo é um homem de sensibilidade única, de uma excepcional abertura aos outros e de uma generosidade constante. Mais tarde, tive a oportunidade de ser o primeiro a ver emergir uma parte completamente secreta da sua obra: milhares de guaches extraordinários que fazem parte daquilo a que ela chama “imaginação activa”. As suas grandes pinturas a óleo atraíram-me de tal modo que acabaram por marcar presença em grande parte das paredes de todos os meus apartamentos.
Em 1982 era um jovem de quarenta anos. Qual era a sua relação com a arte, sobretudo com a pintura?
Ao longo dos anos, Karl mostrou-me detalhadamente os pintores sobre os quais publicou, livros de Paul Klee, retratos de Picasso. Pelo meu lado, sempre fui fascinado por Manet, Baudelaire e o cinema. Após o seu divórcio, quando chegámos a Paris vindos da América do Sul, a minha mãe criou-nos sozinha, a mim e à minha irmã, três anos mais nova. Ela queria que recebêssemos uma educação francesa, tinha que tratar de tudo, encontrar escolas, alojamento, passámos meses de hotel em hotel. Muitas vezes deixava-nos sozinhos no Louvre, nas salas das antiguidades gregas. O Louvre era um pouco como a minha casa, embora eu não conhecesse todos os quartos... E à noite, todas as noites, a minha mãe lia-nos cerca de dez páginas da Odisseia... Pelo seu lado, Karl Flinker tinha também um grande fascínio pela Grécia antiga. Lembro-me que, quando ele se juntava a nós em Ibiza durante o Verão, ele e a minha mãe passavam muito tempo com os camponeses, cujas vidas no início da década de 1950 eram praticamente idênticas às dos gregos dois mil anos antes. Karl até realizou um documentário seguindo os passos de Alexandre, o Grande, que seguiu num Land-Rover até ao coração do Afeganistão. Alguns anos depois, antes da invasão russa, tentei retomar esse projecto no local que ele tinha escolhido, o Nuristão, mas não consegui levá-lo a cabo. Karl tinha encontrado montanheses de olhos azuis e cuja música era diferente da da região, bem como vestígios do culto a Dionísio. Poderia assim dizer que através de Karl, a paixão pela Grécia antiga nos uniu, a Ricardo e a mim, ainda antes de nos conhecermos.
Às vezes fala de Ricardo Cavallo como um monge dos tempos antigos…
O filme de Rossellini, Francesco Giullare di Dio (1950), foi uma das minhas maiores referências e, muito rapidamente, vi no Ricardo um Francisco dos tempos modernos. Ele tem uma dimensão cristã, atrai pessoas que se reúnem ao seu redor, que sentem e sabem que com ele serão escutadas, às quais fala com grande simplicidade e generosidade. E chegamos, quase naturalmente, a ver nele uma espécie de santo moderno. Na minha vida, usei Ricardo um pouco como usei Diógenes quando trabalhei com Bukowski: assim como Diógenes, Bukowski odiava os ricos e dizia sempre o que pensava, era ferozmente independente. E sempre me senti atraído por pessoas independentes. Afinal, comecei com Eric Rohmer! Que nunca foi a restaurantes, que não apanhava táxis, que só viajou de transportes públicos, que não tinha telefone e até se recusou a morar em apartamentos com elevador! Sempre me senti atraído por personalidades artísticas extremas! Na verdade, Rohmer não era realmente radical, mas sacrificou tudo pela sua arte, sem fazer concessões.
Como reagiu Ricardo quando lhe contou sobre o seu projecto de filme sobre ele?
Disse-me: “Se isso te faz feliz…”. O Ricardo sacrifica tudo pelo que lhe interessa e só faz o que lhe interessa. Eu tinha-lhe proposto trabalhar comigo no filme que fiz na Colômbia (Nossa Senhora dos Assassinos, 2000), pensei que ele me poderia ajudar com as cores, mas ele recusou, muito gentilmente, mas com firmeza. Eu estava louco para perguntar isto! Ele tinha trabalhado nos cenários de uma peça de Luc Bondy, outro dos seus amigos mais próximos, mas achou que tinha perdido talvez seis meses...
Qual foi o lugar da história da arte ao longo destes quarenta anos de companheirismo e amizade?
Quando estamos ambos livres, vamos a museus e visitamos exposições. Na realidade, os nossos encontros são sempre decididos com base em obras para descobrir ou encontrar, a arte está sempre presente entre nós. Se ontem fui à igreja de Saint-Paul ver o quadro de Delacroix, Cristo no Jardim das Oliveiras, devo-o ao Ricardo. Foi ele que mo mostrou, talvez há 30 anos. Está sempre em cima das coisas. Todas estas visitas ensinaram-me que o Ricardo fala admiravelmente da história da pintura, que tem o dom de ligar as obras, de fazê-las dialogar. Foi a partir deste talento incrível que desenvolvi o projeto deste filme, que se assemelha a uma navegação na história da arte. Da gruta de Chauvet à gruta de Saint-Jean-du-Doigt, onde Ricardo trabalha hoje, cerca de trinta e seis mil anos depois.
Em que etapa do processo decidiu quais seriam as obras exibidas no filme?
Tive, desde o início, uma lista de obras essenciais para o filme. Tínhamos de conseguir mostrá-las e filmá-las todas! Essencialmente, queria que as trocas que a nossa amizade suscita me permitissem reconstituir a história da arte de uma forma original e viva. Gosto tanto do que o Ricardo diz, do que ele é, do que faz, que a comunhão de pontos de vista já estava estabelecida e, portanto, o terreno estava preparado. O filme nasceu verdadeiramente da associação das nossas duas mentes. Muitas vezes também aconteceu que o Ricardo adivinhava o que eu esperava dele e respondia para além das minhas expectativas. Assim, quando ele estende uma folha, gesto que o leva a evocar os ícones (uma alusão que foi cortada durante a montagem), passa naturalmente para os retratos dos Fayoum, que me apresentou há muito tempo e que me impressionaram para sempre. Eu sabia que eles tinham que ser mostrados no filme, e depois passar para a pintura grega. O pensamento do Ricardo permite mostrar que tudo está ligado de forma íntima, que a história da arte é como um fluxo ininterrupto. Da pintura dos primeiros tempos, chegamos ao Cubismo, a Braque, a Picasso, que tinham de estar absolutamente presentes no filme, para entendermos que a arte continua a existir.
Para que isso fosse possível, os princípios da realização deveriam também atender a esse requisito. Quais foram as escolhas que teve de fazer?
Filmámos em três períodos, cada um entre uma semana e dez dias. Sem qualquer iluminação adicional, o que as câmaras actuais tornam possível. Em geral, trabalhávamos com três câmaras, às vezes quatro, um dispositivo que tornava inevitáveis certos “acidentes”: uma perche no plano, a irrupção de um técnico ou do realizador. Adoro o momento em que o rapazinho está a desenhar, quando o perchista está em campo e o Ricardo vem espreitar na objectiva enquanto eu observo o desenho que a criança está a fazer, esse momento é mágico. Não estávamos à procura de acidentes, que de outra forma não teriam sido realmente acidentes, mas eram bem-vindos. De resto, a ideia era que o Ricardo ficasse o mais confortável possível, algo que me esforço sempre por fazer, com todos os técnicos. O filme é também o filme do quotidiano do pintor, que ao mesmo tempo é também o quotidiano do filme em realização. Para Ricardo não há diferença entre os momentos da vida e aqueles em que pinta. Um almoço partilhado na sua cozinha permite-nos “trazer” o Retrato de Madame Cézanne, que eu sabia desde o início que estaria no filme, mas sem saber quando. Para Ricardo não há ruptura entre a vida, mesmo nos seus aspectos mais quotidianos, e a arte. Isso também faz parte do que o filme pretende mostrar. Se as janelas do Ricardo estão sempre abertas é porque ele quer sempre sentir-se lá fora, como quando pinta, sobre o tema. É uma forma de se preparar. Ele diz também que nunca sente diferença de temperatura...
Diria que as palavras de Ricardo Cavallo oferecem uma espécie de aprendizagem do olhar?
Muitas vezes, com as mãos, ele desenha uma moldura no vazio e diz que essa moldura responde aos mesmos princípios desta ou daquela pintura de Monet. Antes de ele falar, vemos apenas um caminho de cascalho, uma parede, alguma vegetação, mas as suas palavras levam-nos para dentro da pintura, e então vemos uma mesa, uma toalha branca ou uma catedral. Com ele, é um movimento incessante. Estamos juntos à beira-mar, conversamos, ele trabalha, fazemos uma pergunta genérica, como saber qual foi o primeiro pintor a trabalhar sobre aquele motivo, mencionamos os impressionistas, claro, e então o Ricardo cita um certo Annibale Carracci (1560 – 1609), especifica que no início a natureza só estava presente na pintura no contexto dos temas religiosos, mas que quando estes deixaram de ser exigidos, a natureza encontrou um novo lugar... E a partir daí, Ricardo segue para a natureza morta... Explica também que Caravaggio (1571 – 1610) e Velázquez (1599 – 1660) foram os primeiros a pintar directamente, sem desenhar antes, sem um esboço preparatório desenhado, lançaram-se imediatamente, por assim dizer, sem uma rede de segurança.
O talento do pintor como “transmissor” levou-o naturalmente à escola em que ensina em Saint-Jean-du-Doigt…
Eu sabia desde o início que o filme tinha que terminar com as crianças, mas durante muito tempo tive medo que a pandemia nos impedisse de filmá-las. Até cheguei a filmá-las eu próprio, com a minha pequena câmara, só para ter uma garantia, mas não teria sido satisfatório, e então tentei pensar noutros finais possíveis, mas sem muito sucesso. As crianças permitem-nos destacar uma das características essenciais da personalidade de Ricardo, a sua louca generosidade, a atenção que demonstra para com todos, a sua obsessão pela transmissão, a sua paixão pela partilha...
No final do filme, há esta frase: “Seria bom poder continuar esta felicidade assim, todos os dias.” O que vai inventar para reencontrar essa felicidade?
É a pergunta de qualquer pessoa que apenas faz o que quer, que optou por só comer arroz, que se dedica apenas à sua arte, que evita pensar em coisas inúteis. É um modelo de vida. Mas o fim tinha de chegar, não podíamos continuar sem terminar o filme. Agora, a felicidade está no filme.
Entrevista feita por Pascal Merigeau
[Trad. Rebeca Csalog]